As vozes frágeis de Oramas

DAIGO OLIVA

Agora que a Bienal se foi, é preciso refletir.

Por cerca de uma hora, o Entretempos conversou com seu curador chefe, o venezuelano Luiz Pérez-Oramas, sobre o que representou a mega exposição, as vontades que foram deixadas pelo caminho durante a montagem, um pouco de fotografia e, finalmente, a pergunta que precisava ser respondida…

Por que se são artes visuais, os artistas agora fazem coisas que nos obrigam a ter que estar lendo?


Foto: Simon Plestenjak/Folhapress

Sofremos da ansiedade cultural de querer ver tudo

Tô feliz, tô feliz… Estou contente com essa Bienal. Estava convencido de que nunca em toda a minha vida aceitaria um convite para fazer essa exposição. Arrogantemente, pensava que as boas exposições são pequenas, com assuntos mais focados, mais profundos.

Obviamente, um espaço de 25 mil metros quadrados é algo que está além da capacidade de uma pessoa, além das minhas capacidades. Mas sofremos dessa ansiedade cultural de querer ver tudo, e não dá. Você vai se frustrar. Se você vai a uma biblioteca, você não vai ler tudo. Você não precisa vir a Bienal e ver tudo. Só os doentes do mundo da arte é que veêm tudo.

A lição desse trabalho é que foi possível. Não mudaria nada nessa Bienal. Me identifico pessoalmente, espiritualmente e intelectualmente com ela. Não me identifico com o mundo da arte. Por nada. Acho a mídia da arte uma besteira, me perdoe. A negação da inteligência, da lentidão, da distância, da reflexão. Tudo tem que ser imediato, tem que ser espetacular.

A gente tem que aceitar também que o exercício curatorial seja criativamente mal-entendido. A Bienal foi muito mal compreendida. Ela colocou os esquematismos do mundo da arte em outro lugar, que não se trata de opor política contra a forma. Tem uma questão comunitária, íntima. Uma Bienal que coloca a questão da linguagem.

Arte com legenda

Uma obra da Bienal tinha o título “Por que se são artes visuais, os artistas agora fazem coisas que nos obrigam a ter que estar lendo?”. Essa é uma pergunta fundamental. Eu acho que no último momento, o Alberto [Casari, artista peruano] não queria colocar o texto. Mas insisti. Porque esse texto é o condutor da Bienal.

Claro que o Alberto fez como uma piada, mas se você desmembrar, tem muitas possibilidades.

Até que ponto as artes visuais lidam com uma realidade preliminar? Até que ponto ainda é possível ver o mundo como se ele ainda não tivesse nome?

Sempre dizia para os meus alunos, que toda obra precisa de uma explicação.

Nós queremos que uma porção, um fragmento de paraíso perdido ainda exista e que você tenha um acesso transparente ao mundo sem mediação. A gente atribui isso, miticamente, às artes. Mas está errado. As artes precisam de, como tudo no mundo, uma explicação.

É complicado escrever textos explicativos em exposição sem dar uma certa diretriz às obras. Você tem que acreditar na potência de comunicação das obras e deixar solto. Um dos grandes segredos que aprendi fazendo essa Bienal é que você não pode amarrar tudo, tem que deixar solto..

Aceitar o risco de deixar as coisas soltas, não resolvidas. O sucesso consiste em saber quando soltar. Os desfechos são seus.

As vozes frágeis

Algumas pessoas do mundo da arte acham que a Bienal não é lugar para a pequena obra, para os pequenos formatos.

Esse foi um evento de grande dimensão, mas onde era possível escutar as pequenas vozes, as vozes frágeis. É muito importante acharmos uma possibilidade de que uma pequena voz se escute no meio desse evento monumental, porque a pequena voz é pequena em dimensão, mas não em potencialidade.

Escritura da luz

Acho que na fotografia contemporânea acontece o mesmo que com a arte contemporânea. Artistas pouco e muito interessantes na medida que seguem um estereótipo técnico mais do que seguem uma necessidade expressiva.

O meio fotográfico foi uma invenção moderna também em termos sociais. Aconteceu pela primeira vez na história que um meio artístico pudesse ser manipulado e produzido por todos. Não só por um. Todos nós somos fotógrafos.

Antes, por, sei lá, 5000 anos [Oramas chuta um número qualquer], as práticas expressivas de caráter visual foram determinadas pelas escrituras da sombra. Só com essa invenção da fotografia começa a possibilidade de uma escritura da luz.

E hoje, com o mundo digital, ela é o quê? A tradução numerada de uma escritura da luz? Tenho saudade da presença de uma reflexão forte nesse sentido do pensamento fotográfico em geral.

A Bienal que não foi

Eu imaginei a cena final de “Os Incompreendidos”, de Truffaut, quando Antoine sai correndo em direção à praia. Imaginei e queria uma grande tela na entrada da Bienal vendo Antoine em seu caminho pela praia. Penso espacialmente e não no abstrato.

Também gostaria de uma Bienal só com obras do Artavazd Peleshian. Fiquei fanático por ele quando vi uma restrospectiva no Jeu de Paume, em Paris. Uma dessas exposições transformadoras. Acho que o pensamento dessa Bienal foi muito formado, no começo, pela ideia que nós tínhamos de inseri-lo. Mas não deu. Até cartazes com imagens do Peleshian eu tinha imaginado para essa Bienal.

Comentários

  1. Ótima essa reflexão sobre a escritura da fotografia. A fotografia é digital hoje, mas os fotógrafos continuam escrituras. Palavra, ou melhor: verbo, que é também a ação da palavra. Ainda não é digital. A graça é transformar o digital em palavras. Em escritura. Pra reflexão, qual será o atributo dessa que chamarei de intersecção, digital X escritura?

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