Lorenzo Vitturi: ‘Faço um jogo promíscuo em que fotografia, escultura e colagem se fundem’

DAIGO OLIVA

Na última semana, publicamos um texto sobre as novas possibilidades da fotografia a partir do resultado do Paul Huf Award deste ano.

Poucos meses antes da premiação das esculturas fotográficas feitas com “pedaços da internet”, de Daniel Gordon, um outro trabalho que segue caminho parecido ao do norte-americano já chamava a atenção do blog.

“Dalston Anatomy”, do italiano Lorenzo Vitturi, 33, figurou na maioria das listas de melhores fotolivros de 2013.  Lançado pela editora inglesa Self Publish Be Happy, a obra é inacreditavelmente colorida. Embora o conteúdo político do livro não seja transmitido instantaneamente, o apelo estético e a estranheza das imagens são tão fortes que é impossível não notá-las.

O interesse pelo trabalho do fotógrafo ficou ainda maior depois de entender o contexto em que as imagens foram concebidas. Vitturi vive em Dalston, bairro londrino que sofreu forte gentrificação nos últimos anos. Por meio de objetos, retratos e materiais que encontra ao redor do mercado local, o italiano construiu esculturas que reúnem não só as diferentes culturas imigrantes do lugar –e que aos poucos vão sendo trocadas pela especulação imobiliária– mas também fotografia, colagem e design. Ao mesmo tempo.

Você tem que imaginar o mercado, seus produtos e as pessoas como um único corpo, que eu disseco usando a câmera como uma faca de um cirurgião e o meu estúdio como um laboratório”.

Veja abaixo a entrevista com o fotógrafo italiano sobre os processos de “Dalston Anatomy”. A conversa, que aconteceu por e-mail, foi editada.

 

Entretempos – Seu livro é sobre um bairro de Londres que sofreu mudanças e influências de diferentes culturas. Você é um italiano que vive na Inglaterra… Este trabalho é uma forma de entender sua condição de estrangeiro e como você altera o espaço ao redor?

Lorenzo Viturri – Quando cheguei em Dalston, há quatro anos, procurei por cores, agito, vida e encontrei tudo isso no Ridley Road Market. É um dos mais antigos mercados de Londres e centro de concentração de imigrantes africanos, asiáticos e, mais recentemente, latino-americanos. Dalston é como Veneza, minha cidade natal, uma curiosa e fantástica cacofonia de culturas e cores, lares e vozes. Senti a necessidade de captar essa comunidade e traduzí-la em forma de fotografia. Hoje, Veneza é uma Disneylândia, um parque de diversões para milionários e turistas. Dalston está passando por um duro processo de gentrificação, o que é doloroso de acompanhar. Então, continuo entrando em todos esses lugares e registrando como eles são, na sua forma mais crua e bonita, com todos seus defeitos e cheiros, antes que eles se deformem, se transformem e desapareçam como nós conhecemos agora. O tempo se move sempre para frente.

Algo que chama a atenção em “Dalston Anatomy” é que o processo do trabalho poderia ser a própria obra em si. A fotografia aparece como o registro final de uma performance. Você considera seu trabalho, em última instância, fotografia? O processo para chegar ao resultado final é mais importante do que a fotografia em si?

Você está completamente certo. Para mim, a fotografia é apenas o passo final ou, em alguns momentos, um fragmento de um processo mais completo de construção e transformação usando materiais físicos, espaço e luz. Foram muitos anos de experimentação para chegar a este ponto, mas desde o começo da minha carreira a fotografia sempre foi um espaço aberto onde eu posso misturar e fundir diferentes disciplinas como escultura, design, pintura e animação. Sempre me interessei em descobrir novas maneiras de produzir imagens usando esses processos. Especialmente nos dias de hoje, quando a revolução digital transformou a fotografia completamente, este aspecto ganhou mais foco no meu trabalho. Trazer de volta a forma física para um meio que perdeu essa característica. Assim, a fotografia se tornou um meio mecânico que documenta aquilo que acontece em frente a câmera. 

Como isso se aplica em “Dalston Anatomy”?

No caso do livro, inventei uma nova maneira de trabalho que gosto de comparar a um anatomista visionário. Você tem que imaginar o mercado, seus produtos e as pessoas como um único corpo, que eu disseco usando a câmera como uma faca de um cirurgião e o meu estúdio como um laboratório. Durante o processo, seleciono os elementos mais interessantes em termos de forma e cor. Depois dessa seleção, trago todos esses fragmentos para o meu estúdio e misturo tudo, num jogo promíscuo em que escultura, colagem e pintura se fundem. Então, recrio uma série de novas anatomias, cujo resultado só existe no meu mundo visionário. O final desse processo é uma série heterogênea que mistura diferentes linguagens e aproximações fotográficas. De snapshots e retratos feitos na rua a fotos de esculturas. De fotografias de colagens a imagens de materiais encontrados e escaneados. Tudo pode ser editado para criar um fluxo fluido, usando cores e similaridades anatômicas como um agente de ligação narrativa.

O trabalho tem um nível alto de experimentação. O processo foi algo racional e lógico ou aconteceram muitas improvisações?

Acho que dirigi a obra para encontrar um acordo entre ordem e caos, um balanço entre preparação lógica e improvisação instintiva. Enquanto em outros projetos o lado conceitual está anulando o imediatismo das cores, formas e composições, na minha opinião, consegui chegar próximo de uma arte como a música, em que forma e conteúdo são um só. Esta é a minha proposta: fazer arte cuja fruição é natural e imediata como música.

Como você começou a se interessar por escultura?

Quando eu estava em Roma, trabalhando como pintor na indústria de cinema. O fato de construir cenários em grande escala usando escultura, arquitetura, pintura e o curto “tempo de vida” dessas peças, que são feitas para durar apenas alguns minutos, me fez pensar que são objetos construídos só para serem fotografados. Também achei interessante que nesses cenários o fato de que um mesmo objeto tridimensional deve ser visto de um ponto de vista único, um ângulo específico, para satisfazer sua proposta inicial. Um ângulo diferente pode te dar uma alternativa completamente nova do mesmo objeto. Quando eu trouxe essa experiência para minha fotografia, logo se tornou um dos pontos da minha pesquisa. 

Daniel Gordon venceu o último Paul Huf Award. Mesmo que sejam trabalhos diferentes, o resultado final de cada um de vocês tem similaridades. O futuro da fotografia é a escultura?

Fotografia é um dos suportes mais flexíveis e “líquidos” que existem. Sua natureza ambígua pode ser adaptada para uma ampla diversidade de campos, da medicina ao meio científico. Por isso, não acho nada estranho um crescente grupo de fotógrafos de arte misturando fotografia com outras disciplinas. Especialmente em um período em que todo mundo é um fotógrafo em potencial e milhões de imagens são produzidas e compartilhadas todos os dias. As pessoas que decidiram dedicar parte de suas vidas a uma prática tão “comum” estão respondendo a esta democratização e explorando novas maneiras de fazer fotografias. Gosto de construir coisas com objetos para criar novas formas híbridas. Coisas que não precisam ficar juntas. Apenas a fotografia tem a mágica de congelar o momento fugaz da beleza dessas esculturas antes de desaparecerem.

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