E deixou as cobras lamberem o sangue das suas bochechas – Ensaio Palavra-Imagem com Regina Parra

Cassiana Der Haroutiounian

Este Ensaio Palavra-Imagem vem com uma força avassaladora das duas partes da artista Regina Parra. Convidei-a há dois mês a criar algo especialíssimo para o blog e o resultado ficou incrível! Parra trabalha com pintura, fotografia e vídeo, abordando questões como novas hierarquias de poder, limites, controle e mudanças de limites culturais, expondo em diferentes instituições pelo mundo. Pedi para ela me contar do processo de criação e decidi manter o relato em primeira pessoa:  

A palavra e o texto são parte fundamental do meu processo criativo como artista. Em alguns trabalhos, a palavra — geralmente vinda de fontes como teatro, poesia, filosofia — vira matéria e faz parte da obra — como em alguns luminosos em neon que produzi ou em pinturas onde frases são pintadas por cima de imagens.

O convite de Cassiana surgiu como um desafio, uma vez que o texto seria texto, linguagem e não matéria. Mas ainda assim, estaria em diálogo ou confronto com as imagens das pinturas.

Assim surgiu esse ensaio Palavra-Imagem que eu chamo de “ELA lavou as mãos e deixou as cobras lamberem o sangue das suas bochechas”.

As imagens e o texto — transcritos do Arquivo Nacional Francês que tornou público sete séculos de arquivos judiciais sobre mulheres — partem de uma pesquisa que investiga como aquilo foi condenado como “bruxaria” em plena Renascença, mais tarde diagnosticado como “histeria”, tratava-se, fundamentalmente, do sintoma de ser mulher.

Entendendo essas mulheres como antepassadas de um corpo feminino tentador que fascina e assusta, este ensaio é uma invocação, celebração e atualização das vozes insubmissas que resistem e seguem desejantes.

ELA

 

Denunciada como bruxa por mulheres condenadas à morte por bruxaria, Martiale Espaze fugiu com o marido dela. ELA é presa e interrogada pelo juiz do baronato de Boucoiran. ELA tem má reputação (mãe bruxa) e leva uma vida considerada escandalosa. ELA confessa seus feitiços: ter envenenado, com o pó que o demônio lhe deu, uma menina e dois meninos; tendo matado vários porcos.

Interrogada sobre o que mais fazia em sua dita assembleia diabólica.

ELA disse que no sabbat, de onde não queriam sair, prestavam homenagem ao diabo, que tinha a forma de um bode, beijando sua parte traseira, ou seja, o ânus.

 

Questionada sobre como elas faziam esta homenagem.

ELA disse que elas vinham uma após a outra, carregando uma tocha na mão, às vezes com fogo e iluminada, às vezes apagada.

 

Interrogada se o chamado Robin fazia a homenagem.

ELA disse que não; […] que na volta do sabbat, na beira da estrada, o chamado Robin a conheceu carnalmente e copulou com ELA. Quando ele a conhecia, ele colocava a chamada Martiale de quatro, segurando sua cabeça contra o chão. E, nessa posição, eles copularam como bestas.

 

Interrogada qual a forma que o chamado Robin assumia enquanto a conhecia carnalmente.

ELA disse que ele tinha a forma de um homem e, como ELA acabou de depor, ele a conhecia por trás.

Suzanne Gaudry foi condenada a ser estrangulada e depois queimada. Negando todas as acusações, foi torturada várias vezes, inclusive em 27 de junho.

 

Sob tortura, ela manteve suas confissões.

Disse ser verdade que ELA é uma bruxa e que ELA manteria o que disse.

 

Interrogada há quanto tempo estava à submissão do diabo.

ELA responde que há vinte anos o demônio apareceu para ELA […], sob a forma de um homem.

 

Perguntada sobre o nome do seu amante.

ELA disse Petit-Gringnon.

 

Mais tarde, ainda sob tortura, ELA nega ser uma bruxa e diz que não pode dizer nada.

Questionada se seu amante fez sexo carnal com ELA e quantas vezes.

ELA não responde nada, e até finge estar doente. Não sabíamos mais como arrancar uma palavra dela. […] É por isso que ela foi enviada de volta para a prisão.

 

No dia seguinte, 28 de junho, os juízes a lembraram das confissões obtidas no dia anterior. ELA afirma que não é uma bruxa.

 

Perguntada se não é verdade que foi ao baile noturno com a sobrinha.

ELA responde que não, nunca.

 

Perguntada por que então ELA mesma confessou nesta mesma sala em duas ocasiões diferentes.

ELA disse que foi forçada a confessar.

 

Interrogada porque ELA confessou que tinha sido uma bruxa há vinte anos.

Disse que era porque ELA estava com muita dor.

 

Poucos dias depois, no dia de sua execução, o juíz volta a interrogar. ELA está doente na prisão.

ELA confirma sua confissão e confirma o encontro com seu amante (o diabo). ELA descreve como ele deixou uma marca em seu ombro, como ele a levou para dançar no Sabbat, e como eles copularam juntos nove ou dez vezes.

Adrienne D’Heur é esposa de um ourives. Os vizinhos a temem, suspeitam que ela está traindo o marido e quer envenená-lo; as crianças fogem dela. Em 1646, durante seu julgamento, ELA foi visitada pelo carrasco (o mestre executor) que buscava a marca do diabo. ELA nega os feitiços malignos que são atribuídos a ELA.

 

Apesar da presença dos mestres executores, ELA não parecia comovida ou tocada por qualquer apreensão […], nem mesmo quando a agarraram, e abaixaram sua blusa até a cintura. Ao contrário, seu atrevimento e ousadia foram interpretados por nós como consciência pesada.

 

Os mestres executores, tendo assim a despido até a cintura, procuraram a marca por todo o corpo, na lateral das costas e no peito. O mestre de Pourrantruy a picou em alguns lugares com um grande alfinete de prata, e ELA apenas gritou e reclamou que estava sendo picada.

 

Ele então enfiou profundamente seu dedo no meio das suas costas, um pouco abaixo dos ombros. E ali inseriu o alfinete de prata, ao que ELA respondeu sentir nenhuma dor. Ele a picou em vários pontos do corpo, tanto nos mamilos, como nos braços e nas coxas, e ELA sempre testemunhou ter dores e sensações. Entretanto, ELA não sentiu o alfinete que seguiu inserido no meio de suas costas, ficando ali por meio quarto de hora. Indagada se sentia alguma picada no corpo, ELA disse que não, que não sentia nada e que era uma boa mulher.

 

Importante notar que a marca não derramou sangue e a abertura permaneceu bem visível e aparente. Ao redor dela havia como uma pequena garra que os mestres executores julgaram ser a marca do diabo. Apesar de tudo, ELA negou ser uma marca.

 

ELA acaba confessando, sob tortura.  E relata em detalhes seu caso com o diabo e cenas de antropofagia. ELA é condenada pelo crime de feitiçaria e heresia uma vez que afirmou ter renunciado a Deus para se unir ao maligno. ELA morre na fogueira.