Com nova direção, Arles diminui de tamanho e descentraliza curadorias

DAIGO OLIVA

O texto abaixo é de Livia Melzi. Obrigado pela colaboração!

Fotografia da série “Uncommon Places”, de Stephen Shore, realizada em 1974

Ainda era inverno em Arles, na França, quando Sam Stourdzé, 43, entrou na École Nationale Supérieure de la Photographie. Naquela tarde, o novo diretor de um dos mais importantes festivais de fotografia do mundo discursou durante três horas diante de uma pequena –e ácida– plateia. Ele contou sua trajetória e mostrou mudanças que traria para um evento tão tradicional.

O posto foi dado a Stourdzé depois que o antigo diretor do Rencontres d’Arles, François Hebel, entrou em desacordo com a bilionária fundação Luma, entidade suíça que financia a mostra. Nos dez anos em que Hebel esteve à frente no comando, o festival idealizado em 1970 pelo fotógrafo Lucien Clergue (1934-2014) ganhou fama, organização e dinheiro.

Entre as mudanças proposta por Stourdzé para a edição do 2015 do Rencontres, inciada no último dia 7, a mais interessante e corajosa foi diminuir o tamanho do evento, que em 2014 contava com 70 exposições; este ano Arles não chegou a 50. Ele também descentralizou a curadoria, que antes era realizada apenas por Hebel. Para a mostra sobre Walker Evans, por exemplo, Stourdzé convidou David Campany, especialista em história da fotografia, enquanto a magnífica parte dedicada a Stephen Shore ficou nas mãos da espanhola Marta Dahó. Esta dinâmica fez com que as exposições ganhassem olhares singulares sem sair do formato do festival.

Neste ano, Arles ainda contou com novos espaços e prêmios. Em destaque, os mais de mil metros quadrados destinados à primeira edição do Cosmos Book, evento satélite no qual editoras especializadas em fotolivros apresentam suas obras a preços camaradas, e o Luma Dummy Book Award, que selecionou 30 finalistas e premiou “The Jungle Book”, projeto de Yann Gross, com 25 mil euros. No tradicional Prix du Livre, os trabalhos “Monograph Vitas Luckus. Works. Biography”, de Margarita Matulyte e Tatjana Luckiene-Aldag, e “H. Said He Loved Us”, de Tommaso Tanini, levaram 8 mil euros cada um –em 2013, a brasileira Rosângela Rennó levou o prêmio.

Imagem de “Les deux Labyrinthes”, obra de Michel Le Belhomme

Já o disputado “Prix Decouvert” foi para Pauline Fargue, 40, laureada com 25 mil euros, para desgosto dos críticos que apostavam em Omar Victor Diop. O fotógrafo senegalês realizou autorretratos em que representa personagens africanos dos séculos 15 ao 19 que foram marginalizados pela história oficial europeia. Seu trabalho mais conhecido traz fotografias inspiradas em quadros e esculturas, evocando códigos de postura e vestimenta de cada época.

O lado B do festival, a mostra paralela Voies Off, contou com surpresas agradáveis nas 80 exposições que promoveu, e premiou Michel Le Belhomme pelo trabalho “Les deux Labyrinthes”. O francês produziu uma série sobre representação de paisagens, manipulando suportes fotográficos como plástico, papel e madeira em forma de relevos e esculturas. O suporte, por meio da manipulação, se transforma no que a imagem representa.

Enquanto Arles se despedia do usual espaço dos Ateliers, que dará lugar a um empreendimento da Fundação Luma –com projeto de Frank Gehry–, a abandonada Papeterie Etienne ganhou vida e será, ao que tudo indica, o novo lugar do festival. Ainda tímido, o espaço abrigou um diálogo proposto entre o Rencontres e a população local de ciganos. Este grupo marginalizado ganhou visibilidade durante o festival com trabalhos realizados por coletivos, arquitetos e fotógrafos. Guiado pela jovem fotógrafa Eleonore Lubna, 26, e pelo novo diretor, o grupo documentou a vida destas famílias e desenvolveu, junto a elas, um projeto que possa inclui-las na cidade.

Em sua fala, Sam Stourdzé afirmou aos estudantes da ENSP (École Nationale de la Photographie) que a fotografia é um campo fluído capaz de penetrar em outras artes com destreza. Seu discurso foi concretizado durante o festival, e esta intersecção, chamada por ele de “ressonância”, foi explorada em exposições que dialogavam com cinema, música, arquitetura e até etnografia. Na mostra “Total Records”, por exemplo, o visitante pode navegar por coleções de capas de disco que reproduzem imagens célebres, ou fotos banais que se tornaram famosas depois de estamparem capas de álbuns.

Capa de “Middle Man”, álbum de Boz Scaggs e parte da mostra “Total Records”

Há também a exposição “Fellini, 8 1/2 Couleur”, com fotos coloridas de Paul Ronald (1924-2015) sobre os bastidores dos filmes do diretor italiano, e o espaço batizado como MMM, que exibe a coleção de imagens do músico francês Matthieu Chedid, recheadas de fotos de Martin Parr. A dupla também protagonizou uma noite de projeções no antigo teatro da cidade. Enquanto Chedid cantava, imagens de Parr coloriam o telão.

Este cruzamento entre fotografia e diferentes áreas trouxe enriquecimento de ideias que foi reconhecido e aprovado pelo público. O grande diálogo, porém, aconteceu com estes mesmos estudantes, que têm no festival um campo aberto para mostrar seus trabalhos. Ao menos quatro exposições foram dedicadas ou concebidas por alunos da ENSP. Esta inteligente manobra faz de Arles não só a sede de um dos maiores festivais de fotografia da Europa, com público aproximado de cem mil pessoas –só a semana de abertura contou com mais de treze mil pessoas–, mas também um polo de formação de jovens fotógrafos. O festival segue até o dia 20 de setembro.

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