De Dentro #9
O De Dentro dessa semana é de Daigo Oliva.
Numa daquelas coisas que não se explicam mesmo, acabei cursando uma escola técnica. Minha vida toda fui aquele menino que brigava com números, tinha sono durante as disciplinas de exatas e meu ódio por Física só não era maior do que qualquer coisa relacionada a área de biológicas. Os números basicamente me serviam para contar as páginas dos livros e, posteriormente, os séculos na faculdade de História.
Mas por um desavento da vida, numa tentativa de copiar o irmão mais velho, lá fui eu pro Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo cursar… eletrônica. Lá tive grandes amigos (muitos deles também não se tornaram engenheiros) e, apesar de não ter morado num apartamento durante minha infância e adolescência, foi a experiência integral num bairro bem longe de casa que evitou que eu me tornasse um piá de prédio.
Após três anos arrastados, formei-me e então fui pro mundo real fazer o estágio pra, finalmente, pegar o diploma. As coisas que não se explicam se repetem continuamente na minha vida, e um amigo da escola técnica, esse sim engenheiro, passou na Unicamp, deixando a vaga de estagiário numa multinacional japonesa de fotografia em aberto.
Botei minha roupa de missa, preparei o olhar de técnico (devo ter falado várias coisas impressionantes na entrevista) e, putz, fui contratado. Lá testei um monte de câmeras, consertei outras tantas, aprendi a fotometrar, descobri a regra dos terços e encontrei essa foto.
Todo dia o ritual era o mesmo. Entra às 8h, almoça às 11h30 e, durante uma hora, joga pingue pongue com todo mundo na empresa. Desnecessário dizer que eu, honrando minha origem semi japonesa, era um Pelé do tênis de mesa. A empresa passava por reformulações, havia doado toda a sua biblioteca de livros de fotografia e outras tantas imagens de seu acervo estavam sendo descartadas. Entre elas, essa foto de uma TV caindo…
A salinha que ainda guardava essas imagens ficava bem ao lado da mesa de pingue pongue. Parei de jogar e fui lá pegar a foto que estava indo para o lixo. Foi um fenômeno na minha casa. Lá da parede, era o hit de todas as visitas. A foto é de verdade? É armação? Como o cara conseguiu fazer o foco na TV? E a mulher olhando pra cima bem na hora?
Sei lá, sei lá. Não sabia nada sobre essa foto, só sabia que é incrível. Depois de uns cinco anos e duas mudanças de casa, peguei a imagem e tomei vergonha na cara. A única referência era um nome, “Júlio Vilela”.
Procurei no Facebook, vi que tinha amigos da fotografia em comum e mandei uma mensagem, perguntando o que era aquilo. “Fala Daigo, tudo bom? É minha sim… Essa foto fiz quando trabalhava pro ‘Notícias Populares’, em 1995. Onde você a viu? Foi uma felicidade mesmo ter feito essa foto. Três mulheres faziam um ritual de magia negra, ficaram alteradas e jogaram a mobília pela janela. Eu voltava pro jornal quando encontramos essa situação, na rua Guaianases, perto da Redação”.
É difícil explicar como uma imagem consegue ficar ainda melhor depois de se descobrir a verdade por trás. O fato é que essa foto me lembra dos tempos de escola técnica, do primeiro emprego que me levou até a fotografia e de todos os lugares em que morei depois de sair da asa dos meus pais.
E continua lá, até agora.
Daigo Oliva é editor-assistente de fotografia da Folha. Como fotógrafo, colaborou para a própria Folha, o site de notícias G1, editora Abril e outros veículos, além de ter produzido o fanzine “Fodido e Xerocado”, ao lado de Mateus Mondini.
Toda segunda, o Entretempos publica a seção De Dentro –uma pessoa elege uma imagem importante em sua vida (uma fotografia, um quadro, uma capa de disco, um postal, o que vier a cabeça) para relembrar memórias e sensações ou relatar o porquê daquela figura ser tão fundamental.
Gostou? Confira os outros “De dentro”: Lulina, Daniel Klajmic, Mônica Maia, Nazareno Rodrigues, Beto Brant, Manuel da Costa Pinto, Marcos Augusto Gonçalves e Cassiano Elek Machado.
Você me fez viajar no tempo. Além de fotografar maravilhosamente bem, seus textos são ótimos!